Lisboa, 10 de Abril de 2013
Marcelo Camelo fez do Tivoli a sua sala de estar esta noite e encheu-se de amigos. Pelo menos, amigos dos que partilham a paixão pela arte maravilhosa que o traz por dentro.
Num cenário de quase nada, envolto numa atmosfera ultra-intimista, pisou o palco trajado dessa humildade tão brasileira, comovido pelo calor das gentes e pelas palmas que se prolongaram ao primeiro encontro. Uma timidez terna que adivinhou o nervosismo confesso pelo próprio. "Quando fico assim nervoso, parece que dá um negócio de 'mãos de águia', mas vai que vai, que a gente vai".
Chamou-se o escuro e na "hora de entrar em cena" ofereceu o "sorriso bossa-nova" e acendeu as "Luzes da Cidade", uma música não editada em disco, mas com direito a bis mais para o final. Até podia ter sido um 'tris' que ninguém se iria queixar. Que tema maravilhoso!
Nas primeiras interpretações completamente a solo, passou por alguns temas do álbum Toque Dela: "Pra te acalmar", "A Noite" e "Tudo o que você quiser". Uma sonoridade que ainda remete muito para o tempo e irreverência de Los Hermanos, apesar da variante acústica e deste ser o álbum cronologicamente mais afastado da banda do Bloco do Eu Sozinho.
Ainda que minimalistas, os acessórios de palco antecipavam a participação de mais alguém neste delírio emocional colectivo. E não se fez esperar. Como se quisesse interromper a "Liberdade" criativa do Camelo, mas de forma absolutamente discreta, surge o som de rabeca nas mãos de Thomas Rohrer, deixando o violão do "moreno do cabelo enroladinho" perder-se dentro de si próprio. Loiro, suíço radicado no Brasil há perto de 20 anos, que rasga as cordas da rabeca como se a esventrasse numa alternância de intensidade, capaz de protelar aquela tortura para sempre. Tive a sensação imediata de estar a entrar num filme de David Lynch, com laivos de Badalamenti, em que a banda sonora tem um papel importantíssimo na fotografia e ajuda a substituir tantas vezes, e tão bem, os diálogos. O senhor Lynch havia de gostar de conhecer este Rohrer.
Momento emocionante e perturbador: "Janta". O tema que, para mim, tem o registo do abraço mais bonito da história da música, num concerto promovido pela MTV. Vale a pena espreitar estas imagens. O Tivoli aceitou o desafio e cantou sem falhas, como se quisesse compensar a ausência da "pitanga".
Visivelmente emocionado, transtornado, docemente desorientado e tantos outros "ados" que agora não me apetece explorar, Marcelo soltou uns acordes de "Saudade" que "gostaria de tocar se ainda soubesse como se toca". Desistiu, passou à frente com a maior das naturalidades e ninguém levou a mal. Afinal, estava entre amigos e os amigos não andam de dedo em riste.
Seguiram-se alguns clássicos de Los Hermanos e outras composições individuais do álbum Sou/Nós. Para mim, que sou apenas crente e cheia de fé nestas paixões, um dos melhores discos brasileiros de sempre.
O tempo não ia longo, mas havia protocolos a cumprir. Fechou como abriu: "Luzes da Cidade".
Perante um público a aplaudir de pé, Marcelo não teve como não regressar, impondo a vontade de continuar a tocar e a cantar. Estava comovido, muito comovido, arrebatadoramente comovido. O que diremos nós, que levámos mais de 1 hora e meia num arrepio só.
No final, nem veio "só dar a Despedida". Com ar de moleque e "filho de sol poente" , deixou Rohrer sozinho no seu derrame artístico de quem tortura a rabeca e saiu de fininho, como entrou, de beijo nos lábios e sorriso bossa-nova. "Esse menino canta bonito demais".
Volta depressa, Marcelo. Estes amigos de Lisboa quando gostam, gostam mesmo!
AP
quinta-feira, 11 de abril de 2013
sexta-feira, 18 de janeiro de 2013
Suspiro... E a violência do 'para sempre'...
... com a alegria deste legado.
"Meu caro Vinicius de Moraes,
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou.
Você partiu antes. É a primeira Primavera de 1913 para cá sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua e nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem três garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nessa Primavera. Acho que você aprovaria.
O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois um sudoeste com chuva e frio. São violências primaveris."
"Meu caro Vinicius de Moraes,
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou.
Você partiu antes. É a primeira Primavera de 1913 para cá sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua e nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem três garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nessa Primavera. Acho que você aprovaria.
O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois um sudoeste com chuva e frio. São violências primaveris."
in Vinicius de Moraes, Documentário
http://www.youtube.com/watch?v=JvEOkeJiX_I
http://www.youtube.com/watch?v=JvEOkeJiX_I
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
Mistérios de África 1
Um dia, há já muito tempo, contaram-me que a sul, lá muito a sul, havia um continente virgem, solitário, árido e enorme. Lembro-me que estava a aprender os continentes e os oceanos. Disseram-me que era diferente do nosso - agora deles, talvez. Que tinha poucos carros, poucas televisões e muito pouca comida. Que as pessoas eram diferentes. Que tinham outra cor, outro cheiro, outro olhar e falavam uma língua estranha. Contaram-me que lá nessa terra eram todos irmãos filhos de uma só Mãe. "Todos?? Então e os pais, quantos eram?". Mostraram-me imagens para que visse que os meninos dessa terra brincavam descalços na rua e jogavam com bolas de pano a retalhos, com o sorriso mais aberto do mundo. Ensinaram-me que todas estas coisas faziam parte de uma magia única e verdadeira, que só existe ali, e que se algum dia me perdesse, pedisse que me levassem a África - "Lá encontramo-nos sempre", disseram-me baixinho. Nesse dia, adormeci a saber que foi lá, muito a sul, que nasceu a Terra.
(...)
AP
17.12.2012
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
O rapaz da guitarra que sorria e lia Neruda
Hoje, enquanto viajava abstraída das estações de metro que a cidade percorria, vieram-me à memória os finais de tarde do último verão no Alentejo. Talvez pela falta que me faz a ausência de palavras daquela terra. Ou pela noite gelada que caía em Lisboa. O silêncio da planície alentejana e o calor abafado que se refresca no mar são a religião que às vezes preciso para absolver os meus pecados e derramar a minha fé.
"Próxima estação..." e eu continuava com os pés afundados na areia quente a ver o mundo a acontecer ao redor. Esses dias que só acontecem no Alentejo.
Tenho para mim que tudo o que vivemos tem o seu tempo e o seu espaço. E tem também o seu lugar na nossa caixa de sorrisos. No Alentejo tudo é diferente e os sorrisos também. São sossegados na espera e abraçam calorosamente quem os aceita. Manifestam a inocência e a ingenuidade doce de quem aprendeu cedo o segredo para a simplicidade do caminho.
"Há correspondência com a linha..." e lembrei-me subitamente do rapaz intrigante das Furnas. Fez-me sorrir. Nunca mais tinha revisitado este cantinho da caixa e, como muitos outros, já nem tinha presente que existia.
O rapaz das Furnas era, de facto, intrigante. Chegava à praia todos os dias quando o sol começava a irradiar cores de cansaço. Trazia a guitarra às costas, um livro debaixo do braço e a toalha na mão. Nunca se aproximava de ninguém. Escolhia o local mais reservado da praia, estendia a toalha e colava as mãos às cordas da guitarra. Quando o vento era generoso conseguia ouvi-lo tocar e percebia-lhe o sorriso de quem escrevia cartas de amor em permanência, entre a madeira e as cordas.
Ao seu lado um livro de Pablo Neruda, o primeiro - Crepusculário (consegui identificá-lo ao fim de 3 dias quando, ao sair da praia, passei muito perto daquele poço de mistério). Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Autchhh! Foi também um apelo para explorar aquela obra que, até então, desconhecia. Os poemas que o livro revela atravessam um espaço dolente, musical e melancólico numa demorada nostalgia do mundo afectivo. Mais um motor de paixões que nos move e nos alimenta o sorriso.
Sempre me fascinou a ideia de tentar perceber a história que está por trás de qualquer peça de arte, que não é mais do que o registo do momento de cada um. Tanto quanto a beleza estética, os trilhos percorridos até àquele fim inquietam-me. Que dores esconde um poema? Que saudade se viveu para se cantar a sonhar? Que chão pisado se reflecte num quadro pintado a óleo? Que histórias se contaram para ali chegar? Quem era, na sua essência, o rapaz intrigante das Furnas e porque raio tocava guitarra na praia para depois se deixar mergulhar em Neruda? Era giro, muito giro, giríssimo. Cabelo castanho, grande e desarrumado, a barba mal aparada que deixava a descoberto a pele morena e olhos rasgados que sorriam sozinhos entre cada nota que soltava da guitarra. E estava apaixonado, sem dúvida que estava. Fosse pelo mar a quem confidenciava as suas tardes, fosse pelo crepúsculo que o visitava todos os dias ou pelas linhas de Neruda onde fazia escorrer a sua música. As paixões são mesmo assim. Irracionais, inexplicáveis, irresponsáveis e todos os 'is' que nelas couberem e que as privarem de consciência. Estão longe de ser apenas físicas ou personificadas. Isso torna-as tão assustadoramente redutoras. Eu, por mim, apaixono-me todos os dias simplesmente porque vivo. Pelas coisas e situações mais caricatas e irrelevantes. Livrem-nos dessas emoções mansas e apáticas que nos fazem viver de acordo com as regras. Antes implacáveis, arrebatadores e enfurecidas. É aí que reside a intensidade e a valência dos dias.
Não conheço o rapaz da guitarra que sorria e lia Neruda na praia das Furnas. Não lhe perguntei o nome, nem sequer lhe ouvi a voz. Retive na caixa a história que hoje escrevo a propósito da leitura que fiz das suas paixões. Revisitei-o hoje e viajei mais um pouco pela vida que também sou eu.
"Estação terminal" e sinto que o caminho começa a fazer-se de novo debaixo dos pés. Preciso de ir ao Alentejo.
AP
21.11.2012
"Próxima estação..." e eu continuava com os pés afundados na areia quente a ver o mundo a acontecer ao redor. Esses dias que só acontecem no Alentejo.
Tenho para mim que tudo o que vivemos tem o seu tempo e o seu espaço. E tem também o seu lugar na nossa caixa de sorrisos. No Alentejo tudo é diferente e os sorrisos também. São sossegados na espera e abraçam calorosamente quem os aceita. Manifestam a inocência e a ingenuidade doce de quem aprendeu cedo o segredo para a simplicidade do caminho.
"Há correspondência com a linha..." e lembrei-me subitamente do rapaz intrigante das Furnas. Fez-me sorrir. Nunca mais tinha revisitado este cantinho da caixa e, como muitos outros, já nem tinha presente que existia.
O rapaz das Furnas era, de facto, intrigante. Chegava à praia todos os dias quando o sol começava a irradiar cores de cansaço. Trazia a guitarra às costas, um livro debaixo do braço e a toalha na mão. Nunca se aproximava de ninguém. Escolhia o local mais reservado da praia, estendia a toalha e colava as mãos às cordas da guitarra. Quando o vento era generoso conseguia ouvi-lo tocar e percebia-lhe o sorriso de quem escrevia cartas de amor em permanência, entre a madeira e as cordas.
Ao seu lado um livro de Pablo Neruda, o primeiro - Crepusculário (consegui identificá-lo ao fim de 3 dias quando, ao sair da praia, passei muito perto daquele poço de mistério). Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Autchhh! Foi também um apelo para explorar aquela obra que, até então, desconhecia. Os poemas que o livro revela atravessam um espaço dolente, musical e melancólico numa demorada nostalgia do mundo afectivo. Mais um motor de paixões que nos move e nos alimenta o sorriso.
Sempre me fascinou a ideia de tentar perceber a história que está por trás de qualquer peça de arte, que não é mais do que o registo do momento de cada um. Tanto quanto a beleza estética, os trilhos percorridos até àquele fim inquietam-me. Que dores esconde um poema? Que saudade se viveu para se cantar a sonhar? Que chão pisado se reflecte num quadro pintado a óleo? Que histórias se contaram para ali chegar? Quem era, na sua essência, o rapaz intrigante das Furnas e porque raio tocava guitarra na praia para depois se deixar mergulhar em Neruda? Era giro, muito giro, giríssimo. Cabelo castanho, grande e desarrumado, a barba mal aparada que deixava a descoberto a pele morena e olhos rasgados que sorriam sozinhos entre cada nota que soltava da guitarra. E estava apaixonado, sem dúvida que estava. Fosse pelo mar a quem confidenciava as suas tardes, fosse pelo crepúsculo que o visitava todos os dias ou pelas linhas de Neruda onde fazia escorrer a sua música. As paixões são mesmo assim. Irracionais, inexplicáveis, irresponsáveis e todos os 'is' que nelas couberem e que as privarem de consciência. Estão longe de ser apenas físicas ou personificadas. Isso torna-as tão assustadoramente redutoras. Eu, por mim, apaixono-me todos os dias simplesmente porque vivo. Pelas coisas e situações mais caricatas e irrelevantes. Livrem-nos dessas emoções mansas e apáticas que nos fazem viver de acordo com as regras. Antes implacáveis, arrebatadores e enfurecidas. É aí que reside a intensidade e a valência dos dias.
Não conheço o rapaz da guitarra que sorria e lia Neruda na praia das Furnas. Não lhe perguntei o nome, nem sequer lhe ouvi a voz. Retive na caixa a história que hoje escrevo a propósito da leitura que fiz das suas paixões. Revisitei-o hoje e viajei mais um pouco pela vida que também sou eu.
"Estação terminal" e sinto que o caminho começa a fazer-se de novo debaixo dos pés. Preciso de ir ao Alentejo.
AP
21.11.2012
terça-feira, 15 de maio de 2012
O caminho de regresso a casa...
Era final de dia em Lisboa! O ar corria seco e abafado, mas ao cumprimentar gentilmente as ruas da tarde percebi que o calor não era único na bagagem do tempo. O cheiro quente, agridoce e envolvente desta tarde sul americana que Maio trouxe até Lisboa, escreveu nos meus passos que havia de voltar aqui. É o hoje o dia!
Nessa tarde, Lisboa tinha as cores fortes de um mural onde Rivera politizou as suas obras. O frenesim que se ouvia nas esquinas podia soar às cordas de um qualquer guitarrón mexicano. Se fechasse os olhos, conseguia imaginar-me numa viagem de jipe por Quintana Roo, onde as terras em tom de pimentão doce ofuscam o azul por cima do mundo. Nessa tarde, Lisboa era um mundo com todos os cheiros por dentro e eu sentia-me de volta.
É quando somos chamados a regressar à própria viagem que nos sabemos vivos e temos a certeza que está na hora de nos fazermos ao caminho. Por isso estou aqui! Sem qualquer tipo de desilusão ou vergonha sobre os quase 3 anos de ausência. É que isto de deitar bocados de nós cá para fora tem a sua estrada e o seu tempo, e acontece só mesmo quando tem de ser. E assim é tudo tão mais fácil...
Aos poucos (mas muito bons!!!) que foram acompanhando o "Hoje é o Dia!" devo um pedido de desculpas. Ou então não! Mas deixo-o na mesma! No limite, fui mais vazia de espírito por não alimentar este blog e, também no limite, fui alguém menos rico e estimulante no que ao intelecto diz respeito, para as pessoas que me estão próximas. Por isso, volto a pedir desculpa!
Confesso que ainda não percebi bem o que vai sair deste novo tempo em que também sou o seu produto (do tempo). A vida é o que fazemos dela, mas ela também tem responsabilidade acrescida sobre o que faz de nós.
O que importa se sei ou não o que estou aqui a fazer? Isto é como na fé. Como diz alguém de quem tenho muitas saudades: o que é que interessa se Deus existe ou não? O importante é se acreditamos, ou não, na sua existência.
Até já. :)
AP
15.05.2012
segunda-feira, 5 de março de 2012
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Segredos de um 'fiel depositário'
Rasgas-me. Partes-me em mil sóis. É, de todas, a forma mais digna de me conheceres as cores do fundo e de fora. Em cada pedaço que cortas e abres encontras um novo tom: de um doce veneno, de um céu salgado ou de uma imensidão infinita. Que reconheces. Respiras-me em golfadas serenas e sorris como eu. Assim não corres o risco de teres dores no passado.
Eu sou vidro que corta e diamante que não fere. Transparente. Até mesmo à luz parda da melancolia. E quando as estrelas se vêm deitar, sou vaso de arco-íris e reflexo leal de todas as pedras preciosas. As que pesam, mas também as que elevam a alma porque se consegue ver através delas.
É sempre maravilhoso porque em cada rasgo só mora a verdade. Viajamos sempre neste caminho mágico em que nem precisámos de aprender. Aqui, não cabem juízes, crimes ou castigos. Não há espaço nem tempo para 'porquês'. Não se medem razões ou motivações. Cada instante é o que é. Não isto ou aquilo. Apenas é! Deus não se entende nem se explica. Revela-se no coração dos que bebem do verbo aceitar sem um 'se'. E a viagem continua num trilho de perfeição, liberdade e plenitude. Acontece quando nos sentimos, em cada passo ou direcção, um baú sem fundo da verdade incondicional.
AP
Eu sou vidro que corta e diamante que não fere. Transparente. Até mesmo à luz parda da melancolia. E quando as estrelas se vêm deitar, sou vaso de arco-íris e reflexo leal de todas as pedras preciosas. As que pesam, mas também as que elevam a alma porque se consegue ver através delas.
É sempre maravilhoso porque em cada rasgo só mora a verdade. Viajamos sempre neste caminho mágico em que nem precisámos de aprender. Aqui, não cabem juízes, crimes ou castigos. Não há espaço nem tempo para 'porquês'. Não se medem razões ou motivações. Cada instante é o que é. Não isto ou aquilo. Apenas é! Deus não se entende nem se explica. Revela-se no coração dos que bebem do verbo aceitar sem um 'se'. E a viagem continua num trilho de perfeição, liberdade e plenitude. Acontece quando nos sentimos, em cada passo ou direcção, um baú sem fundo da verdade incondicional.
AP
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
De branco e de água
Salpico por dentro dos fios de água onde sufoco e anulo o oxigénio. O ar é sempre limpo e, por isso, posso invadi-lo de mim. Sou efervescente sem o crepitar do fogo. Apago a dor e lavo as mazelas de cinza. Já o fogo, acende e propaga. Dentro de um copo sem cor consigo colorir o branco transformado em vazio. Porque este suga os lápis de cor que riscam e rabiscam o espaço que se faz do tempo. Esse que tem sempre um nunca em que termina.
Já pintei os átomos enquanto me espreguicei numa fusão perfeita entre o som das gotas. Secas de luz e de negro. E neste aqui, apenas eu e água, num matrimónio de sal que a dor ainda não bebeu.
AP
Já pintei os átomos enquanto me espreguicei numa fusão perfeita entre o som das gotas. Secas de luz e de negro. E neste aqui, apenas eu e água, num matrimónio de sal que a dor ainda não bebeu.
AP
terça-feira, 6 de outubro de 2009
10 anos sem a Voz
Fiz dos teus cabelos a minha bandeira
Fiz do teu corpo o meu estandarte
Fiz da tua alma a minha fogueira
E fiz, do teu perfil, as formas de arte
Fiz das tuas lágrimas a despedida
fiz do teu braço a minha anca
dei o teu sentido à minha vida
E o grito deu-o ao nascer de uma criança
Todos nós temos Amália na voz
E temos na sua voz A voz de todos nós
Dei o teu nome à minha terra
Dei o teu nome à minha arte
A tua vida à primavera
A tua voz à eternidade
Todos nós ...
A tua voz ao meu destino
O teu olhar ao horizonte
dei o teu canto à marcha do meu hino
A tua voz à minha fonte
Todos nós ...
Dei o teu nome à minha terra
Dei o teu nome à minha arte
A tua vida à primavera
A tua voz à eternidade
António Variações
"Amália Hoje"... e Sempre!
"Com que voz" - palavras de Camões - se apresentaram Nuno Gonçalves, Fernando Ribeiro, Paulo Praça e Sónia Tavares. Um inédito não editado dos Amália Hoje, naquele que viria a ser O concerto de música portuguesa que ficará na memória de quem o viveu como o palco que atravessou gerações. Infinito de momentos únicos e eternos, o Coliseu dos Recreios abriu as portas a avós, pais e filhos que, numa experiência quase religiosa, se encontraram na música do tempo para (re)viver e (re)conhecer Amália Rodrigues.
Um projecto construído sob uma chuva de críticas, da parte de quem não respeita a música portuguesa, ou mesmo de quem viu na pop um atentado à vida e obra da Diva do Fado. Amália vivia em verdade. E foi com uma humildade incrivelmente verdadeira que as quatro vozes nacionais subiram ao palco, acompanhados pela colossal Orquestra Sinfónica de Praga. O estigma de serem 'filhos' de bandas que trabalham, maioritariamente, as suas composições em língua inglesa também ameaçou o projecto. Os carrascos são os mesmos que se dizem conhecedores e seguidores fiéis de uma Amália do mundo. A mesma Amália que cantou mil e uma línguas nos países onde levou o cantinho lusitano. "L'Important C'est la Rose" também não ficou no baú, refutando as mentes de RAM diminuida que, por vezes, precisam de ser estimuladas com eléctrodos de inteligência.
Outros há que não podem dispensar um quê de patriotismo. Faz-lhes, realmente, falta. Em voz aguda defendem-no incondicionalmente, mas quando o tom é mais grave cospem farpas a quem sabe honrar com dignidade absoluta as grandes almas portuguesas. Os dedos são apontados na direcção dos responsáveis que têm o mérito de dar a conhecer Amália às gerações mais jovens. Os meninos de 10 anos desta vida que jamais saberiam o que foi a poesia portuguesa por Amália Rodrigues. O certo é que os views dos vídeos de Amália Rodrigues no youtube deram um salto de 350 desde o dia de lançamento do álbum (27 de Abril), para 350 mil até ao dia de hoje. Estes factos que não admitem argumentos são a cereja do mundo estreito e global onde os 'velhos do Restelo' se recusam a viver.
O vazio de pudor não foi sentido apenas nas cordas dos violinos e violoncelos que se desligaram da Eslováquia. Paulo Praça fez parar o coliseu na apresentação do fado do Abandono, que já foi de Peniche e da censura. De punho cerrado, fez erguer uma multidão perante si, homenageando todos os que sofreram nas mãos do estado que já é velho. E gritou liberdade. É esta a convicção que luta por um país onde a opressão às artes e à cultura se revela o maior dos absurdos. Mas afinal, quem são os democratas que continuam a cantar Abril? Curioso. Precisamente os mesmos que colocam filtros a quem se atreve a levar a pátria ao palco.
Numa sintonia perfeita, mas sem nunca perder a identidade que caracteriza cada uma das formiguinhas, foram bossa-nova, pop e fado. Onde está escrito que o rock, o black metal e a pop não podem, ou não sabem, cantar Amália? As vestes a que já habituaram os seus públicos foram as mesmas. Afinal, também sabem viver em verdade como a menina que vendia laranjas no mercado de Alcântara. Mais uma vez a simplicidade de quem não se aproveita da imagem e do sucesso alheio. Antes honra, antes nobreza, antes orgulho de cantar a língua de Pessoa.
A "lindeza tamanha" que Régio ofereceu a Deus e ao Diabo encheu os átomos de uma sala onde se cantou o "Fado Português". Guardada no sentido de Maria, ali se fez uma jura. Com o "lábio a queimar de beijos", Sónia Tavares levantou o fado da sepultura.
Nuno Gonçalves, o cérebro do projecto, era o rosto humilde da paixão e da sensação de missão cumprida. O fogo que colocou em cada nota que lhe saía das teclas transbordou para que cada alma levasse consigo a responsabilidade daquele sucesso. Também ele fez da alma da Diva a sua fogueira e o seu hino à música portuguesa. Porque "todos nós temos Amália na Voz e temos na sua Voz a Voz de todos nós".
Antes do cair do pano, o silêncio estendeu a passadeira a um encontro entre Alain Oulman e Amália num ensaio de "Soledad", algures na década de 80. A peça nunca foi editada na voz da cantadeira, mas a ousadia dos Hoje foi para além do risco, presenteando a plateia com a primeira edição, retrato da paixão do músico que fez o fado cantar todos os poetas.
Sob o olhar atento de uma Amália que vestia a tela ao fundo do palco, a Gaivota voou outra vez. Mas agora na voz do povo que encheu uma das mais antigas salas de espectáculo do país para gritar 10 anos de saudade e eternidade. Foi este o palco que marcou o regresso da fadista, em liberdade. "Que perfeito coração", Amália! E que perfeitas as mãos onde cabem os corações de HOJE!
AP
Um projecto construído sob uma chuva de críticas, da parte de quem não respeita a música portuguesa, ou mesmo de quem viu na pop um atentado à vida e obra da Diva do Fado. Amália vivia em verdade. E foi com uma humildade incrivelmente verdadeira que as quatro vozes nacionais subiram ao palco, acompanhados pela colossal Orquestra Sinfónica de Praga. O estigma de serem 'filhos' de bandas que trabalham, maioritariamente, as suas composições em língua inglesa também ameaçou o projecto. Os carrascos são os mesmos que se dizem conhecedores e seguidores fiéis de uma Amália do mundo. A mesma Amália que cantou mil e uma línguas nos países onde levou o cantinho lusitano. "L'Important C'est la Rose" também não ficou no baú, refutando as mentes de RAM diminuida que, por vezes, precisam de ser estimuladas com eléctrodos de inteligência.
Outros há que não podem dispensar um quê de patriotismo. Faz-lhes, realmente, falta. Em voz aguda defendem-no incondicionalmente, mas quando o tom é mais grave cospem farpas a quem sabe honrar com dignidade absoluta as grandes almas portuguesas. Os dedos são apontados na direcção dos responsáveis que têm o mérito de dar a conhecer Amália às gerações mais jovens. Os meninos de 10 anos desta vida que jamais saberiam o que foi a poesia portuguesa por Amália Rodrigues. O certo é que os views dos vídeos de Amália Rodrigues no youtube deram um salto de 350 desde o dia de lançamento do álbum (27 de Abril), para 350 mil até ao dia de hoje. Estes factos que não admitem argumentos são a cereja do mundo estreito e global onde os 'velhos do Restelo' se recusam a viver.
O vazio de pudor não foi sentido apenas nas cordas dos violinos e violoncelos que se desligaram da Eslováquia. Paulo Praça fez parar o coliseu na apresentação do fado do Abandono, que já foi de Peniche e da censura. De punho cerrado, fez erguer uma multidão perante si, homenageando todos os que sofreram nas mãos do estado que já é velho. E gritou liberdade. É esta a convicção que luta por um país onde a opressão às artes e à cultura se revela o maior dos absurdos. Mas afinal, quem são os democratas que continuam a cantar Abril? Curioso. Precisamente os mesmos que colocam filtros a quem se atreve a levar a pátria ao palco.
Numa sintonia perfeita, mas sem nunca perder a identidade que caracteriza cada uma das formiguinhas, foram bossa-nova, pop e fado. Onde está escrito que o rock, o black metal e a pop não podem, ou não sabem, cantar Amália? As vestes a que já habituaram os seus públicos foram as mesmas. Afinal, também sabem viver em verdade como a menina que vendia laranjas no mercado de Alcântara. Mais uma vez a simplicidade de quem não se aproveita da imagem e do sucesso alheio. Antes honra, antes nobreza, antes orgulho de cantar a língua de Pessoa.
A "lindeza tamanha" que Régio ofereceu a Deus e ao Diabo encheu os átomos de uma sala onde se cantou o "Fado Português". Guardada no sentido de Maria, ali se fez uma jura. Com o "lábio a queimar de beijos", Sónia Tavares levantou o fado da sepultura.
Nuno Gonçalves, o cérebro do projecto, era o rosto humilde da paixão e da sensação de missão cumprida. O fogo que colocou em cada nota que lhe saía das teclas transbordou para que cada alma levasse consigo a responsabilidade daquele sucesso. Também ele fez da alma da Diva a sua fogueira e o seu hino à música portuguesa. Porque "todos nós temos Amália na Voz e temos na sua Voz a Voz de todos nós".
Antes do cair do pano, o silêncio estendeu a passadeira a um encontro entre Alain Oulman e Amália num ensaio de "Soledad", algures na década de 80. A peça nunca foi editada na voz da cantadeira, mas a ousadia dos Hoje foi para além do risco, presenteando a plateia com a primeira edição, retrato da paixão do músico que fez o fado cantar todos os poetas.
Sob o olhar atento de uma Amália que vestia a tela ao fundo do palco, a Gaivota voou outra vez. Mas agora na voz do povo que encheu uma das mais antigas salas de espectáculo do país para gritar 10 anos de saudade e eternidade. Foi este o palco que marcou o regresso da fadista, em liberdade. "Que perfeito coração", Amália! E que perfeitas as mãos onde cabem os corações de HOJE!
AP
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