terça-feira, 6 de outubro de 2009

"Amália Hoje"... e Sempre!


"Com que voz" - palavras de Camões - se apresentaram Nuno Gonçalves, Fernando Ribeiro, Paulo Praça e Sónia Tavares. Um inédito não editado dos Amália Hoje, naquele que viria a ser O concerto de música portuguesa que ficará na memória de quem o viveu como o palco que atravessou gerações. Infinito de momentos únicos e eternos, o Coliseu dos Recreios abriu as portas a avós, pais e filhos que, numa experiência quase religiosa, se encontraram na música do tempo para (re)viver e (re)conhecer Amália Rodrigues.
Um projecto construído sob uma chuva de críticas, da parte de quem não respeita a música portuguesa, ou mesmo de quem viu na pop um atentado à vida e obra da Diva do Fado. Amália vivia em verdade. E foi com uma humildade incrivelmente verdadeira que as quatro vozes nacionais subiram ao palco, acompanhados pela colossal Orquestra Sinfónica de Praga. O estigma de serem 'filhos' de bandas que trabalham, maioritariamente, as suas composições em língua inglesa também ameaçou o projecto. Os carrascos são os mesmos que se dizem conhecedores e seguidores fiéis de uma Amália do mundo. A mesma Amália que cantou mil e uma línguas nos países onde levou o cantinho lusitano. "L'Important C'est la Rose" também não ficou no baú, refutando as mentes de RAM diminuida que, por vezes, precisam de ser estimuladas com eléctrodos de inteligência.
Outros há que não podem dispensar um quê de patriotismo. Faz-lhes, realmente, falta. Em voz aguda defendem-no incondicionalmente, mas quando o tom é mais grave cospem farpas a quem sabe honrar com dignidade absoluta as grandes almas portuguesas. Os dedos são apontados na direcção dos responsáveis que têm o mérito de dar a conhecer Amália às gerações mais jovens. Os meninos de 10 anos desta vida que jamais saberiam o que foi a poesia portuguesa por Amália Rodrigues. O certo é que os views dos vídeos de Amália Rodrigues no youtube deram um salto de 350 desde o dia de lançamento do álbum (27 de Abril), para 350 mil até ao dia de hoje. Estes factos que não admitem argumentos são a cereja do mundo estreito e global onde os 'velhos do Restelo' se recusam a viver.
O vazio de pudor não foi sentido apenas nas cordas dos violinos e violoncelos que se desligaram da Eslováquia. Paulo Praça fez parar o coliseu na apresentação do fado do Abandono, que já foi de Peniche e da censura. De punho cerrado, fez erguer uma multidão perante si, homenageando todos os que sofreram nas mãos do estado que já é velho. E gritou liberdade. É esta a convicção que luta por um país onde a opressão às artes e à cultura se revela o maior dos absurdos. Mas afinal, quem são os democratas que continuam a cantar Abril? Curioso. Precisamente os mesmos que colocam filtros a quem se atreve a levar a pátria ao palco.
Numa sintonia perfeita, mas sem nunca perder a identidade que caracteriza cada uma das formiguinhas, foram bossa-nova, pop e fado. Onde está escrito que o rock, o black metal e a pop não podem, ou não sabem, cantar Amália? As vestes a que já habituaram os seus públicos foram as mesmas. Afinal, também sabem viver em verdade como a menina que vendia laranjas no mercado de Alcântara. Mais uma vez a simplicidade de quem não se aproveita da imagem e do sucesso alheio. Antes honra, antes nobreza, antes orgulho de cantar a língua de Pessoa.
A "lindeza tamanha" que Régio ofereceu a Deus e ao Diabo encheu os átomos de uma sala onde se cantou o "Fado Português". Guardada no sentido de Maria, ali se fez uma jura. Com o "lábio a queimar de beijos", Sónia Tavares levantou o fado da sepultura.
Nuno Gonçalves, o cérebro do projecto, era o rosto humilde da paixão e da sensação de missão cumprida. O fogo que colocou em cada nota que lhe saía das teclas transbordou para que cada alma levasse consigo a responsabilidade daquele sucesso. Também ele fez da alma da Diva a sua fogueira e o seu hino à música portuguesa. Porque "todos nós temos Amália na Voz e temos na sua Voz a Voz de todos nós".
Antes do cair do pano, o silêncio estendeu a passadeira a um encontro entre Alain Oulman e Amália num ensaio de "Soledad", algures na década de 80. A peça nunca foi editada na voz da cantadeira, mas a ousadia dos Hoje foi para além do risco, presenteando a plateia com a primeira edição, retrato da paixão do músico que fez o fado cantar todos os poetas.
Sob o olhar atento de uma Amália que vestia a tela ao fundo do palco, a Gaivota voou outra vez. Mas agora na voz do povo que encheu uma das mais antigas salas de espectáculo do país para gritar 10 anos de saudade e eternidade. Foi este o palco que marcou o regresso da fadista, em liberdade. "Que perfeito coração", Amália! E que perfeitas as mãos onde cabem os corações de HOJE!

AP

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostaria de começar por dizer que inexplicavelmente, ou não, ontem acordei com as palavras: “todos nós temos Amália na Voz e temos na sua Voz a Voz de todos nós". (risos) …
É bom, como diz Chico Buarque deixarmo-nos guiar pelas coincidências.
Acrescentaria a isto, não sendo um especial fã do projecto (aliás como estás enfadada de saber), que fiquei com imensa pena de ter perdido o espectáculo.
O principal mérito deste texto é contar exactamente isso… a de transmitir ao leitor quase uma sensação de testemunha. Que mérito maior poderia ter.?

Eu que elogiei, para quem me quis ouvir (risos), o maravilhoso, audaz, controverso, agitador, filme de Carlos Saura «Fados» que reinventou o fado na sua cabeça e coração através da colaboração generosa de uma nova e velha geração de músicos do mundo. Isto, levou-me acreditar que não sendo um grande amante do fado tradicional, não teria muita dificuldade em entrar no projecto «Amália-Hoje»…
Tinha obviamente que transmitir isto… para não sentires que tenho um particular gosto em desdenhar do projecto… até pelo contrário.

Bem! Mas vamos ao que interessa

É um excelente texto não-jornalístico. Para mim, o melhor que já escreveste. Bebi com ele um pouquinho desse concerto. Cada detalhe, cada por(maior)… Claro que envolto de uma significativa dose de afectividade musical (o que nos conduz grande parte das vezes para uma complicada escrita imparcial), mas termino dizendo, que mesmo sabendo que não tem aspirações, escreves critica musical, como se o tivesses feito toda a vida… começa seriamente a pensar noutros “Domínios Públicos” da tua vida (risos).


PS – numa sala que a par do Coliseu do Porto já recebeu uma “mistura” de nomes que vão desde Miles Davis, a B.B. King, de Chico buarque, a Caetano Veloso, de Elis Regina, a Pat Metheny, de Deep Purple, a Amália Rodrigues (não resisti juntar estes dois), Zeca Afonso e Carlos Paredes… para além das prestigiadíssimas orquestras.
Dá a sensação de ter sido uma noite para a história do coliseu. !!