segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Mistérios de África 1

Um dia, há já muito tempo, contaram-me que a sul, lá muito a sul, havia um continente virgem, solitário, árido e enorme. Lembro-me que estava a aprender os continentes e os oceanos. Disseram-me que era diferente do nosso - agora deles, talvez. Que tinha poucos carros, poucas televisões e muito pouca comida. Que as pessoas eram diferentes. Que tinham outra cor, outro cheiro, outro olhar e falavam uma língua estranha. Contaram-me que lá nessa terra eram todos irmãos filhos de uma só Mãe. "Todos?? Então e os pais, quantos eram?". Mostraram-me imagens para que visse que os meninos dessa terra brincavam descalços na rua e jogavam com bolas de pano a retalhos, com o sorriso mais aberto do mundo. Ensinaram-me que todas estas coisas faziam parte de uma magia única e verdadeira, que só existe ali, e que se algum dia me perdesse, pedisse que me levassem a África - "Lá encontramo-nos sempre", disseram-me baixinho. Nesse dia, adormeci a saber que foi lá, muito a sul, que nasceu a Terra.
(...)

AP
17.12.2012

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O rapaz da guitarra que sorria e lia Neruda

Hoje, enquanto viajava abstraída das estações de metro que a cidade percorria, vieram-me à memória os finais de tarde do último verão no Alentejo. Talvez pela falta que me faz a ausência de palavras daquela terra. Ou pela noite gelada que caía em Lisboa. O silêncio da planície alentejana e o calor abafado que se refresca no mar são a religião que às vezes preciso para absolver os meus pecados e derramar a minha fé.
"Próxima estação..." e eu continuava com os pés afundados na areia quente a ver o mundo a acontecer ao redor. Esses dias que só acontecem no Alentejo.
Tenho para mim que tudo o que vivemos tem o seu tempo e o seu espaço. E tem também o seu lugar na nossa caixa de sorrisos. No Alentejo tudo é diferente e os sorrisos também. São sossegados na espera e abraçam calorosamente quem os aceita. Manifestam a inocência e a ingenuidade doce de quem aprendeu cedo o segredo para a simplicidade do caminho.
"Há correspondência com a linha..." e lembrei-me subitamente do rapaz intrigante das Furnas. Fez-me sorrir. Nunca mais tinha revisitado este cantinho da caixa e, como muitos outros, já nem tinha presente que existia.
O rapaz das Furnas era, de facto, intrigante. Chegava à praia todos os dias quando o sol começava a irradiar cores de cansaço. Trazia a guitarra às costas, um livro debaixo do braço e a toalha na mão. Nunca se aproximava de ninguém. Escolhia o local mais reservado da praia, estendia a toalha e colava as mãos às cordas da guitarra. Quando o vento era generoso conseguia ouvi-lo tocar e percebia-lhe o sorriso de quem escrevia cartas de amor em permanência, entre a madeira e as cordas.
Ao seu lado um livro de Pablo Neruda, o primeiro - Crepusculário (consegui identificá-lo ao fim de 3 dias quando, ao sair da praia, passei muito perto daquele poço de mistério). Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Autchhh! Foi também um apelo para explorar aquela obra que, até então, desconhecia. Os poemas que o livro revela atravessam um espaço dolente, musical e melancólico numa demorada nostalgia do mundo afectivo. Mais um motor de paixões que nos move e nos alimenta o sorriso.
Sempre me fascinou a ideia de tentar perceber a história que está por trás de qualquer peça de arte, que não é mais do que o registo do momento de cada um. Tanto quanto a beleza estética, os trilhos percorridos até àquele fim inquietam-me. Que dores esconde um poema? Que saudade se viveu para se cantar a sonhar? Que chão pisado se reflecte num quadro pintado a óleo? Que histórias se contaram para ali chegar? Quem era, na sua essência, o rapaz intrigante das Furnas e porque raio tocava guitarra na praia para depois se deixar mergulhar em Neruda? Era giro, muito giro, giríssimo. Cabelo castanho, grande e desarrumado, a barba mal aparada que deixava a descoberto a pele morena e olhos rasgados que sorriam sozinhos entre cada nota que soltava da guitarra. E estava apaixonado, sem dúvida que estava. Fosse pelo mar a quem confidenciava as suas tardes, fosse pelo crepúsculo que o visitava todos os dias ou pelas linhas de Neruda onde fazia escorrer a sua música. As paixões são mesmo assim. Irracionais, inexplicáveis, irresponsáveis e todos os 'is' que nelas couberem e que as privarem de consciência. Estão longe de ser apenas físicas ou personificadas. Isso torna-as tão assustadoramente redutoras. Eu, por mim, apaixono-me todos os dias simplesmente porque vivo. Pelas coisas e situações mais caricatas e irrelevantes. Livrem-nos dessas emoções mansas e apáticas que nos fazem viver de acordo com as regras. Antes implacáveis, arrebatadores e enfurecidas. É aí que reside a intensidade e a valência dos dias.
Não conheço o rapaz da guitarra que sorria e lia Neruda na praia das Furnas. Não lhe perguntei o nome, nem sequer lhe ouvi a voz. Retive na caixa a história que hoje escrevo a propósito da leitura que fiz das suas paixões. Revisitei-o hoje e viajei mais um pouco pela vida que também sou eu.
"Estação terminal" e sinto que o caminho começa a fazer-se de novo debaixo dos pés. Preciso de ir ao Alentejo.

AP
21.11.2012

terça-feira, 15 de maio de 2012

O caminho de regresso a casa...


Quando passamos um dia inteiro a respirar o cheiro bafiento e informal dos ares condicionados, o reencontro com o exterior surge quase como que uma renovação ou um renascimento sensorial. E aí podemos deixar fluir a viagem dos sentidos. Empobrecemos quando tomamos este processo de forma puramente inconsciente...
Era final de dia em Lisboa! O ar corria seco e abafado, mas ao cumprimentar gentilmente as ruas da tarde percebi que o calor não era único na bagagem do tempo. O cheiro quente, agridoce e envolvente desta tarde sul americana que Maio trouxe até Lisboa, escreveu nos meus passos que havia de voltar aqui. É o hoje o dia!
Nessa tarde, Lisboa tinha as cores fortes de um mural onde Rivera politizou as suas obras. O frenesim que se ouvia nas esquinas podia soar às cordas de um qualquer guitarrón mexicano. Se fechasse os olhos, conseguia imaginar-me numa viagem de jipe por Quintana Roo, onde as terras em tom de pimentão doce ofuscam o azul por cima do mundo. Nessa tarde, Lisboa era um mundo com todos os cheiros por dentro e eu sentia-me de volta.
É quando somos chamados a regressar à própria viagem que nos sabemos vivos e temos a certeza que está na hora de nos fazermos ao caminho. Por isso estou aqui! Sem qualquer tipo de desilusão ou vergonha sobre os quase 3 anos de ausência. É que isto de deitar bocados de nós cá para fora tem a sua estrada e o seu tempo, e acontece só mesmo quando tem de ser. E assim é tudo tão mais fácil...
Aos poucos (mas muito bons!!!) que foram acompanhando o "Hoje é o Dia!" devo um pedido de desculpas. Ou então não! Mas deixo-o na mesma! No limite, fui mais vazia de espírito por não alimentar este blog e, também no limite, fui alguém menos rico e estimulante no que ao intelecto diz respeito, para as pessoas que me estão próximas. Por isso, volto a pedir desculpa!
Confesso que ainda não percebi bem o que vai sair deste novo tempo em que também sou o seu produto (do tempo). A vida é o que fazemos dela, mas ela também tem responsabilidade acrescida sobre o que faz de nós.
O que importa se sei ou não o que estou aqui a fazer? Isto é como na fé. Como diz alguém de quem tenho muitas saudades: o que é que interessa se Deus existe ou não? O importante é se acreditamos, ou não, na sua existência.

Até já. :)
AP
15.05.2012

segunda-feira, 5 de março de 2012