sexta-feira, 31 de julho de 2009

De Homens e de Sombras...


Ao fundo da estrada estreita e desalinhada, envolvida num arvoredo absoluto e secreto, ergue-se enfim o templo. O velho carvalho que o anuncia não se confunde com a restante vegetação que nega ao sol a curiosidade de ir espreitando. Dele, apenas se lhe conhece o calor e não a luz. É demasiado denunciador e a sua sede de protagonismo faz desconfiar os azulejos que se pintam de azul. Os troncos largos de madeira e a sombra do alpendre são mais dignos da sua entrega. As paredes de linhas discretas são fortaleza de si próprias. Guardiãs fiéis de todos os tesouros que lhes foram confiados. É como se, uma vez atravessada a moldura da porta, nada de mal pudesse acontecer.
Aqui tudo é vida, tudo é alma e ser completo. O chão de pedra desliza sob os pés de quem chega e convida os passos a tornarem-se guias da viagem que ali se inicia. Os livros varrem as estantes que não terminam e imploram por companhia, como se estivessem cansados de estar sozinhos. Quase que se ouvem sussurros inquietos e de ansiedade por partilharem a dor e o amor com que foram escritos. É o que acontece quando se tem dentro o vício de emoções que é silenciado pelo medo de um júri pouco sensato. A temeridade, felizmente, é efémera e as capas gastas devolvem a cada página o calor e a vida de outros tempos.
Lá dentro o espaço é amplo, mas tem ausência de vazio. O ar está nutrido de letras, de convicções profundas e de fé na liberdade. Só que as rosas têm espinhos. E ainda que inebriado pelos cravos cor de sangue, sente-se o cheiro a amargos de boca de um "cavalo espantado". Em cada canto a memória de quem clamou, ao templo, 'santuário'. Por toda a parte levantam-se suspiros inspirados de neorealismo, anjos ancorados e histórias de amor onde em cada final infeliz se recomeça um novo agora, exímio em romper drasticamente com as restantes. Essas, o tempo que se encarregue de as publicar no seu livro de contos, se quiser. Já ninguém as vai conseguir trazer de volta, dê ele as voltas que der. A autenticidade das coisas reside na sua natureza única e na incapacidade de desenhar réplicas fiéis. Não existem segundas chances porque o ontem não acontece nunca mais.
Se pudesse entrar numa elipse do tempo sentar-me-ia na mesa redonda em silêncio a provar dos pensamentos alheios. Os mesmos que ainda perfumam as telas pintadas de Nery.
Resta a graça de me curvar perante aqueles que tinham (e aqui ainda têm) na alma o princípio da vida e do pensamento. E que permanecem vivos neste templo, onde a densa floresta é uma mera natureza morta que não se cansa de proteger a essência viva das artes.

Ao Tiago S.
Tela: Eduardo Nery

AP

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Hora de Estrellas


El silencio redondo de la noche
sobre el pentagrama
del infinito.

Yo me salgo desnudo a la calle,
maduro de versos
perdidos.
Lo negro, acribillado
por el canto del grillo,
tiene ese fuego fatuo,
muerto,
del sonido.
Esa luz musical
que percibe
el espiritu.

Los esqueletos de mil mariposas
duermen en mi recinto.

Hay una juventud de brisas locas
sobre el río.


Federico Garcia Lorca in Libro de Poemas

Ao AC.


domingo, 19 de julho de 2009

Do not spend your whole life hiding your heart away



Conhecer é apaixonar-se. Por quem aparece na manhã que chove. Pelo sol que quebra a montanha, qual Narciso, espelhando os seus raios imperiosos de adeus. Pela música que canta da janela regada a jasmins lilases. Ou mesmo pelo suspiro que sai de dentro, mas que vem de fora. Por estas coisas e outras tantas. É aceitar a dádiva perfeita de cada momento inesperado do presente. Deste e de outros tantos que vão parando pelos apeadeiros da vida.
As paixões são imediatas, fogazes e brutas como o 'acidente' de conhecer. E levam-nos. Por viagens estonteantes e intensas que podem durar um minuto ou a eternidade. O tempo suficiente para que não haja espaço para respirar. Tocam na dor sempre que se deseja na sua sombra um esconderijo, e aliviam a alma quando o coração está cheio de amor vazio.
Mais do que tudo o que se sabe é que há um presente em que também partem. Afinal, não pode chover para sempre e a montanha também se cansa do papel de espelho-mágico. A voz da música não é igual a cada passagem por uma qualquer janela que rega malva-rosas azuis, e os "ais" de quem vai não são os mesmos de quem ficou mas já foi embora. É a natureza do grito. Nas paixões também nada se perde. Transformam-se. Apuram-se. Refinam-se. Ainda que doa. Porque se assim não fosse, nunca o teria sido - PAIXÃO.
Apaixonar-se é deixar de conhecer, colocando as partículas da essência num pote de vidro, em que podem ser observadas sem o risco de riscar a paixão (im)perfeita.


Thanks for the inspiration. À BC.

AP

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Por Eça de Queiroz



"No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo do céu azul-claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta-escura, coroada pelo Palácio da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro."

Eça de Queiroz in Os Maias
Foto: AP

Este é o retrato da intemporalidade da romântica e bucólica Sintra. Do "vão do arco" do Palácio de Seteais onde Eça pintou este quadro de palavras, que ainda hoje permanece como se tivesse parado no tempo.

Ao João Silva.

AP

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Desde sempre...


Ensinaste-me o que é a unidade,
a ouvir as palavras que nunca chegam a ser ditas.
A sentir o que tu pensas
com a certeza de que pensas o que eu sinto.
Ensinaste-me a saber de mim, por tudo o que sei de ti.

Ensinaste-me a viver no teu silêncio.
Esse que fala sempre a veradade e nunca me invade de dúvidas.

Sou mestre na tradução do teu dicionário mudo,
apenas porque te conheço a transparência do olhar.
Não preciso de palavras para saber de ti
e sei que tu também não precisas:
ambos sabemos o que vai cá dentro.

Eu sou o teu fruto e tu a minha raíz.
É dela que me alimento.

Ensinaste-me a suportar o mistério que nos une,
a força que nos comanda
e a sossegar o coração pela ausência das palavras.

Sei de cor o valor de sermos dois, e um.
Estamos sempre juntos, mesmo que separados,
nesta integridade única de quem sabe sempre o que quer.

Esse silêncio é o melhor porto de abrigo que conheço.
Não preciso de te dizer quando o meu coração dói,
nem que os heróis das histórias são meros amadores ao pé de ti.
Ambos sabemos o segredo.

Não se diz, não se ouve, não se escreve e não se vê.
Sente-se com a alma, que é apenas uma.

Parabéns, Papá!!!

AP