terça-feira, 27 de outubro de 2009

Segredos de um 'fiel depositário'

Rasgas-me. Partes-me em mil sóis. É, de todas, a forma mais digna de me conheceres as cores do fundo e de fora. Em cada pedaço que cortas e abres encontras um novo tom: de um doce veneno, de um céu salgado ou de uma imensidão infinita. Que reconheces. Respiras-me em golfadas serenas e sorris como eu. Assim não corres o risco de teres dores no passado.
Eu sou vidro que corta e diamante que não fere. Transparente. Até mesmo à luz parda da melancolia. E quando as estrelas se vêm deitar, sou vaso de arco-íris e reflexo leal de todas as pedras preciosas. As que pesam, mas também as que elevam a alma porque se consegue ver através delas.
É sempre maravilhoso porque em cada rasgo só mora a verdade. Viajamos sempre neste caminho mágico em que nem precisámos de aprender. Aqui, não cabem juízes, crimes ou castigos. Não há espaço nem tempo para 'porquês'. Não se medem razões ou motivações. Cada instante é o que é. Não isto ou aquilo. Apenas é! Deus não se entende nem se explica. Revela-se no coração dos que bebem do verbo aceitar sem um 'se'. E a viagem continua num trilho de perfeição, liberdade e plenitude. Acontece quando nos sentimos, em cada passo ou direcção, um baú sem fundo da verdade incondicional.

AP

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

De branco e de água

Salpico por dentro dos fios de água onde sufoco e anulo o oxigénio. O ar é sempre limpo e, por isso, posso invadi-lo de mim. Sou efervescente sem o crepitar do fogo. Apago a dor e lavo as mazelas de cinza. Já o fogo, acende e propaga. Dentro de um copo sem cor consigo colorir o branco transformado em vazio. Porque este suga os lápis de cor que riscam e rabiscam o espaço que se faz do tempo. Esse que tem sempre um nunca em que termina.
Já pintei os átomos enquanto me espreguicei numa fusão perfeita entre o som das gotas. Secas de luz e de negro. E neste aqui, apenas eu e água, num matrimónio de sal que a dor ainda não bebeu.

AP

terça-feira, 6 de outubro de 2009

10 anos sem a Voz


Fiz dos teus cabelos a minha bandeira
Fiz do teu corpo o meu estandarte
Fiz da tua alma a minha fogueira

E fiz, do teu perfil, as formas de arte


Fiz das tuas lágrimas a despedida

fiz do teu braço a minha anca

dei o teu sentido à minha vida

E o grito deu-o ao nascer de uma criança


Todos nós temos Amália na voz
E temos na sua voz A voz de todos nós


Dei o teu nome à minha terra

Dei o teu nome à minha arte

A tua vida à primavera

A tua voz à eternidade


Todos nós ...


A tua voz ao meu destino

O teu olhar ao horizonte

dei o teu canto à marcha do meu hino

A tua voz à minha fonte


Todos nós ...


Dei o teu nome à minha terra

Dei o teu nome à minha arte

A tua vida à primavera

A tua voz à eternidade
António Variações


"Amália Hoje"... e Sempre!


"Com que voz" - palavras de Camões - se apresentaram Nuno Gonçalves, Fernando Ribeiro, Paulo Praça e Sónia Tavares. Um inédito não editado dos Amália Hoje, naquele que viria a ser O concerto de música portuguesa que ficará na memória de quem o viveu como o palco que atravessou gerações. Infinito de momentos únicos e eternos, o Coliseu dos Recreios abriu as portas a avós, pais e filhos que, numa experiência quase religiosa, se encontraram na música do tempo para (re)viver e (re)conhecer Amália Rodrigues.
Um projecto construído sob uma chuva de críticas, da parte de quem não respeita a música portuguesa, ou mesmo de quem viu na pop um atentado à vida e obra da Diva do Fado. Amália vivia em verdade. E foi com uma humildade incrivelmente verdadeira que as quatro vozes nacionais subiram ao palco, acompanhados pela colossal Orquestra Sinfónica de Praga. O estigma de serem 'filhos' de bandas que trabalham, maioritariamente, as suas composições em língua inglesa também ameaçou o projecto. Os carrascos são os mesmos que se dizem conhecedores e seguidores fiéis de uma Amália do mundo. A mesma Amália que cantou mil e uma línguas nos países onde levou o cantinho lusitano. "L'Important C'est la Rose" também não ficou no baú, refutando as mentes de RAM diminuida que, por vezes, precisam de ser estimuladas com eléctrodos de inteligência.
Outros há que não podem dispensar um quê de patriotismo. Faz-lhes, realmente, falta. Em voz aguda defendem-no incondicionalmente, mas quando o tom é mais grave cospem farpas a quem sabe honrar com dignidade absoluta as grandes almas portuguesas. Os dedos são apontados na direcção dos responsáveis que têm o mérito de dar a conhecer Amália às gerações mais jovens. Os meninos de 10 anos desta vida que jamais saberiam o que foi a poesia portuguesa por Amália Rodrigues. O certo é que os views dos vídeos de Amália Rodrigues no youtube deram um salto de 350 desde o dia de lançamento do álbum (27 de Abril), para 350 mil até ao dia de hoje. Estes factos que não admitem argumentos são a cereja do mundo estreito e global onde os 'velhos do Restelo' se recusam a viver.
O vazio de pudor não foi sentido apenas nas cordas dos violinos e violoncelos que se desligaram da Eslováquia. Paulo Praça fez parar o coliseu na apresentação do fado do Abandono, que já foi de Peniche e da censura. De punho cerrado, fez erguer uma multidão perante si, homenageando todos os que sofreram nas mãos do estado que já é velho. E gritou liberdade. É esta a convicção que luta por um país onde a opressão às artes e à cultura se revela o maior dos absurdos. Mas afinal, quem são os democratas que continuam a cantar Abril? Curioso. Precisamente os mesmos que colocam filtros a quem se atreve a levar a pátria ao palco.
Numa sintonia perfeita, mas sem nunca perder a identidade que caracteriza cada uma das formiguinhas, foram bossa-nova, pop e fado. Onde está escrito que o rock, o black metal e a pop não podem, ou não sabem, cantar Amália? As vestes a que já habituaram os seus públicos foram as mesmas. Afinal, também sabem viver em verdade como a menina que vendia laranjas no mercado de Alcântara. Mais uma vez a simplicidade de quem não se aproveita da imagem e do sucesso alheio. Antes honra, antes nobreza, antes orgulho de cantar a língua de Pessoa.
A "lindeza tamanha" que Régio ofereceu a Deus e ao Diabo encheu os átomos de uma sala onde se cantou o "Fado Português". Guardada no sentido de Maria, ali se fez uma jura. Com o "lábio a queimar de beijos", Sónia Tavares levantou o fado da sepultura.
Nuno Gonçalves, o cérebro do projecto, era o rosto humilde da paixão e da sensação de missão cumprida. O fogo que colocou em cada nota que lhe saía das teclas transbordou para que cada alma levasse consigo a responsabilidade daquele sucesso. Também ele fez da alma da Diva a sua fogueira e o seu hino à música portuguesa. Porque "todos nós temos Amália na Voz e temos na sua Voz a Voz de todos nós".
Antes do cair do pano, o silêncio estendeu a passadeira a um encontro entre Alain Oulman e Amália num ensaio de "Soledad", algures na década de 80. A peça nunca foi editada na voz da cantadeira, mas a ousadia dos Hoje foi para além do risco, presenteando a plateia com a primeira edição, retrato da paixão do músico que fez o fado cantar todos os poetas.
Sob o olhar atento de uma Amália que vestia a tela ao fundo do palco, a Gaivota voou outra vez. Mas agora na voz do povo que encheu uma das mais antigas salas de espectáculo do país para gritar 10 anos de saudade e eternidade. Foi este o palco que marcou o regresso da fadista, em liberdade. "Que perfeito coração", Amália! E que perfeitas as mãos onde cabem os corações de HOJE!

AP

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

(...)

Amar é dar. Derramar-nos num vaso que nada retém. E somos um fio de cana por onde circulam ventos e marés. Amar é aspirar as forças generosas que nos rodeiam. O sol e os lumes. As fontes ubérrimas que vêm do fundo e do alto. Dar tudo ao outro. Dar-lhe tanta verdade quanto ele possa suportar. E mais, obrigar o outro a elevar-se a um grau superior de eminência. Fulguração! Mas não tanto que o fira ou destrua em overdose que o leve a romper o contrato.
Amar é raro porque poucos somos capazes de respirar as vastas planícies com a metade do seu pulmão. E é raro porque poucos aceitam a presença do seu semelhante. A boca insaciável de um irmão que todos os dias o vento esculpe e destrói. Aceitar as diferenças e padecer da dor alheia, como se fossemos os grãos de areia que todos os dias o mar devora.

AP