segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre


E agora, Manuel? Acomodamo-nos à sombra do inconsciente colectivo?



domingo, 27 de setembro de 2009

Canta Camarada, Canta










Canta camarada canta
canta que ninguém te afronta
que esta minha espada corta
dos copos até à ponta

Eu hei-de morrer de um tiro
Ou duma faca de ponta
Se hei-de morrer amanhã
morra hoje tanto conta

Tenho sina de morrer
na ponta de uma navalha
Toda a vida hei-de dizer
Morra o homem na batalha

Viva a malta e trema a terra
Aqui ninguém arredou
nem há-de tremer na Guerra
Sendo um homem como eu sou.

Zeca Afonso

sábado, 26 de setembro de 2009

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em seu louvor hei-de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.


E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama


Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes, Estoril, Outubro de 1939



sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"A espantosa realidade das cousas"

Podia ter-me acontecido em qualquer outra manhã desta vida. Mas a neblina que humedecia a areia, enquanto o sol preguiçoso começava a acordar, deixava adivinhar a acertividade do caminho que me corria debaixo dos pés. Era aquela a manhã que, sob uma perspectiva pessoana, viria a ser um reencontro com a 'espantosa realidade das cousas'. O instante preciso em que a certeza ganha força e o que tem de ser glorifica essa mesma certeza. Desta vez é o epicurismo de Caeiro que reside. É a vivência do aqui e agora, gozando em cada sensação o seu conteúdo original.
A paisagem simples que se me apresentou podia ter sido pintada pelas palavras do 'guardador de rebanhos'. O mar estava agitado e as ondas espumavam revoltadas como se estivessem famintas de uma sede que as suas águas não saciam. Protegido pelos rochedos do lado norte do areal, um velho pescador contemplava serenamente o fio de nylon preso à cana, na esperança de que o momento o escolhesse para mais uma luta necessariamente desigual. Aproximei-me e espreitei para dentro do balde que estava vazio. "Hoje ele não quer e quando assim é nem vale a pena haver discussão", desabafou o velhote quando percebeu o meu ar de compaixão pela sua pouca sorte na pescaria. Sorri-lhe e confortei-o com um encorajante "a paciência é uma virtude". Desejei-lhe um bom dia e continuei a minha caminhada pela areia onde as ondas perdiam o fôlego e morriam para voltar a renascer. Depois da parede rochosa do lado sul percebia-se uma pequena baía que a baixa-mar denunciava. Sentei-me calmamente a passear os olhos pelo jornal do dia, mas sempre com atenção ao rugido feroz de cada onda. Não fossem elas fazer-me refém da baía, impedindo-me a passagem para terra firme. Não tinha relógio e também não dei pelo tempo passar. Mas achei que estava na hora de me ir dirgindo para um sítio mais seguro.
O velhinho continuava no mesmo sítio, só que agora algo mais atarefado numa luta desenfreada com o carreto que teimava em desenrolar. A presa parecia valer a pena, quanto mais não fosse pela resistência que estava a oferecer. Voltei a aproximar-me. No balde anteriormente vazio, cintilavam agora um sargo e duas safias. Enquanto não tirou o anzol da boca de mais uma safia ignorou completamente a minha presença. Decidi dar-lhe os parabéns pela paciência e preseverança. Afinal a pescaria até não estava a correr mal.
O velhinho de barbas brancas bem aparadas olhou para o jornal que eu trazia na mão e perguntou-me se havia alguma notícia interessante. Ofereci-lho de imediato, assegurando que já o tinha lido e que podia ficar com ele. Agradeceu, mas respondeu-me sem qualquer tipo de vergonha ou sentimento de humilhação que não sabia ler. Aquela sinceridade espontânea, despida de qualquer tipo de pudor impulsionou-me os dedos com os quais comecei a folhear o jornal para ler as actualidades ao velho senhor. Só me interrompia no final de cada artigo e poucas foram as notícias que comentou. À excepção de uma ou outra de foro político, em que fazia questão de demonstrar a sua indignação por um "país ingovernável". Numa das vezes que decidiu falar mais do que ouvir, contou-me alguns dos trilhos da sua vida.
O senhor Matias tinha 75 anos e vivia com a esposa num típico monte alentejano muito perto daquela praia. Toda a vida tinha vivido do mar, mas há muitos anos que a faina o abandonou. Dedicava-se agora à pesca apenas para subsistência da família. Quando o mar acordava generoso ia vendendo umas moreias, sargos ou safios para um ou outro restaurante, cujos donos considerava e tinha alguma amizade. O mar sempre fora o seu sustento, mas também se tinha feito pagar muito bem por este serviço. O senhor Matias tinha perdido a única filha numa tarde de Outubro, algures na década de 70, por obra daquele mar. O corpo nunca apareceu, tal a fúria e convicção com que o azul lhe preparou a partida. Não resisti a questioná-lo sobre a sua relação com aquelas águas. A ironia da fidelidade diária a um mar que lhe robou a sua maior obra era admirável. Respondeu-me, confortavelmente, que o rancor nunca lhe correu nas veias e que até os nossos carrascos merecem o respeito e o amor que não sabem dar. As palavras sinceras e altruístas do senhor Matias recordaram-me uma frase que alguém me disse um dia: "Ama-me quando menos mereço, pois é quando mais preciso". Este é o segredo da plenitude e da descoberta de todos os dias.
Mais dois dedos de conversa e perguntou-me se vivia ali perto. Contei-lhe que estava em viagem e que o acaso me tinha levado até àquele quadro. E mais uma vez a constatação que até o próprio acaso tem mesmo de acontecer.
O sol indicava o meio-dia e o senhor Matias preparava-se para mais um "até amanhã" àquele mar que tinha que amançar todos os dias. Fiquei petrificada quando me lançou o convite para almoçar em sua casa na sua companhia e da, dona Emília, sua esposa. Não podia aceitar, era muita generosidade da parte daquela alma para com alguém que, provavelmente, nunca mais veria na vida. Mas a expressão ofendida do senhor Matias prevendo a minha resposta não me deixou alternativa e aceitei o desafio da descoberta de mais um milagre.
O monte ficava a pouco mais de 2 quilómetros da praia. Durante a viagem dei comigo um pouco apreensiva, mas em nenhum momento senti que estivesse a por-me em risco. A calma e serenidade daquele velhinho que falava pouco contagiava-me e senti-me tão segura como se me dirigisse para a minha própria casa. A casa do senhor Matias e da menina "Milinha" (como a tratavam carinhosamente) apresentou-se-me com um monte de redes de pesca quase podres na entrada do portão. Há anos que não deviam ser mexidas, tal era o aspecto desprezado e bolorento com que me saudaram.
A dona Emília não se mostrou surpreendida com a minha chegada. Apenas lhe senti uma carinhosa aflição por não estar preparada para receber convidados para o almoço. "Nem tenho um docinho para sobremesa", lamentou-se envergonhada. Que coração grande o desta senhora. Aquele sorriso doce construído pela idade e o cheirinho afável a coentros da sua cozinha já me tinham sabido pela vida e alimentado a alma, mesmo sem almoçar.
Enquanto o senhor Matias preparava as brasas para assar as safias vomitadas pelo mar, ajudei a dona Emília a preparar o resto do almoço. Ao contrário do marido, falava muito mas fazia muito poucas perguntas. Era como se sentisse que não devia fazê-lo e aceitasse a minha presença sem questionar. "Cada cousa é o que é" e para a dona Emília não era difícil explicar a facilidade em aceitar a "espantosa realidade das cousas".
O almoço foi temperado pelos barrotes de madeira escura que enquadravam o perfeito naquele cantinho aconchegante e por algumas histórias que o senhor Matias partilhou com orgulho. A vida tinha sido madrasta, mas os dois eram o espelho de uma viagem feliz. Eram donos de uma simplicidade, ternura e amor que o olhar não escondia. Também para eles a vida era um milagre e isso bastava-lhes. "Basta exisitir para se ser completo".
Reparei que em cima do móvel da televisão estavam empilhadas algumas edições do Borda D'Água e perguntei à dona Emília se gostava de ler. Se o senhor Matias não lia, aquela leitura devia pertencer-lhe. Respondeu-me que sim, mas que lia apenas o Borda D'Água que um vizinho lhe trazia de quando em vez. Tentei responder à bondade do seu olhar. Olhei para dentro da minha mochila e a única coisa que podia deixar-lhe era um livro de poesia. Poemas, Sonetos e Baladas de Vinicius de Moraes. Abri o livro e li-lhe o primeiro texto que, curiosamente ou não, se chamava "Soneto de Fidelidade". Apresentei-lhe rapidamente o autor. E a ironia de ter sido escrito em Portugal em 1939, precisamente no ano de nascimento da dona Emília despertou nos seus lábios uma tremenda gargalhada de quem rejuvenesceu para sempre. Não sei se a D. Emília vai entender o velho Vinicius, mas eu jamais esquecerei o perfume dos coentros, a doçura da sobremesa que não teve tempo de preparar e a intensidade com que o senhor Matias se entregou ao momento inesperado do presente.
Se a menina 'Milinha' e o senhor Matias soubessem o que fizeram por mim naquela manhã, viveriam o tempo que lhes resta com a certeza inquestionável de um lugarzinho no céu.

AP


"A espantosa realidade das cousas,
é a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
e é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra
e o quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo"

Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Instantâneos da Génese






Reencontro com a serenidade


Tinham passado dez anos e o cheiro do ar ainda era da mesma cor. Os rochedos dourados pelo sol ainda se deixavam beijar pelas mesmas águas tímidas que lhes juraram amor eterno. Se o eterno era este 'para sempre', sob o olhar atento da Ponta da Piedade cada vaga tinha cumprido o seu compromisso de fidelidade, estendendo-se todas as jornadas no mesmo leito.
Saúl tinha descido a enorme escadaria que dá acesso ao areal com um aperto no peito, certo da sua descrença na lealdade da natureza. A fé tinha-o traído há uma década atrás quando decidiu deixar as gentes de Lacóbriga. Ou talvez tenha sido ele a trair a fé, num tempo em que ainda vivia na sensação de iminência total. E a mais infeliz de todas as verdades foi-lhe, finalmente, revelada naquele cenário. Tudo o que tinha procurado naqueles longos anos foi evidente num simples enrolar de ondas na areia fina. A harmonia era perfeita e intemporal. Naquele sítio, naquele lugar, a longínqua tarde de Maio em que decidiu partir parecia-lhe agora tão próxima. Saúl vasculhou o coração e a resposta estava ali. Ou melhor, não estava. A clave de sol que iniciava a pauta e marcava o ritmo do órgão vital tinha desaparecido. Tudo permanecia intacto. Era ele que já não pertencia àquele quadro. Tinha sido ele a acinzentar-se e a recusar aquele sol, procurando um outro que aquecesse outros rochedos. Os seus . Que afinal não estavam em qualquer outra parte do mundo, se não ali mesmo.
Subiu de novo a escadaria, para voltar a descê-la na tentativa de se encontrar. Mas lá dentro só vazio. Apenas o rasto da paixão que a natureza se ocupou de preservar e que, no tempo em que as emoções eram vício, o medo o impediu de beber.

Praia de D. Ana, 22 de Setembro de 2009

AP

sábado, 19 de setembro de 2009

Do céu que já não sei...


Há sempre qualquer coisa de céu e de chuva. Há também o ar e a água de uma Paris sem Luz. A velhinha ainda se senta no mesmo banco de madeira à espera do eterno amor que, garante, ainda vai chegar. Já é Outono. Espreita agora sereno, sem a exuberância que o Verão habituou. Ainda bem que chove. Não vão os campos secar e deixar inertes os corpos que os protegem. Dói-me o ar. Dói-me o chão. Mas a água também lava os nimbos e penteia os cirros. Também esses precisam de se estatelar num trambolhão. Encontro sempre um varredor de mazelas. Daqueles que ainda têm o cuidado e a ousadia de as encaminhar para o vaso de reciclagem. Enquanto varre sossega-me o coração que se sagra e tranquiliza-me a alma que já não se esconde. Confidencia-me a revolta da missão que é ingrata: esvaziar o ar para que volte a receber a visita da malvada. Essa, mas tão útil e indispensável, dor. Dou-lhe o conforto da grandeza da obra que é deitar à terra para colher. Mesmo as mazelas em putrefacção conseguem transformar-se em lei. Só que depois há o Inverno. E o gelo. E o vento. Esse que, em golfadas de ira, espalha o vazio engolindo o pobre do varredor. A ironia reside na presunção do saber e na arrogância da verdade que erra: é que quando se aprendem as respostas, mudam as perguntas. E mais um (des)encanto de pérolas envenenadas, confirmando a debilidade da sua origem. Então a noite deita-se. Para que o céu seja chuva e a água o ar dentro da superfície.


AP

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O DESEN(canto) do Cisne


"Você não admite, Símias, que tenho o mesmo dom da profecia que os cisnes: pois eles cantaram durante toda a vida, e ao perceberem que devem morrer, de modo algum deixam de cantar, e cantam mais docemente que nunca, exultando com o pensamento de que logo irão ter com Apolo, de quem são representantes. Os homens, entretanto, como temem a morte, falsamente acusam os cisnes de cantarem lamentos em seus dias finais. Quanto a mim, os poderes proféticos de que Deus me dotou não são menores que os dos cisnes, e por isso não estou nem um pouco triste por deixar a vida."

Sócrates in Fédon de Platão

Então o canto não é apenas o prenúncio do fim... Temer a morte é um puro acto de cobardia. Morrer é renascer. E renascer é a antítese do canto - desencanto. Esta traição de palavras que enganam e deturpam a definição de canto (do cisne) quando, afinal, a beleza reside no próprio DESEN(canto). As asas desenham pequenos cristais quando a hora é de voar. HOJE É O DIA do voo do desencanto e não do canto que encerra o voo.

AP