sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"A espantosa realidade das cousas"

Podia ter-me acontecido em qualquer outra manhã desta vida. Mas a neblina que humedecia a areia, enquanto o sol preguiçoso começava a acordar, deixava adivinhar a acertividade do caminho que me corria debaixo dos pés. Era aquela a manhã que, sob uma perspectiva pessoana, viria a ser um reencontro com a 'espantosa realidade das cousas'. O instante preciso em que a certeza ganha força e o que tem de ser glorifica essa mesma certeza. Desta vez é o epicurismo de Caeiro que reside. É a vivência do aqui e agora, gozando em cada sensação o seu conteúdo original.
A paisagem simples que se me apresentou podia ter sido pintada pelas palavras do 'guardador de rebanhos'. O mar estava agitado e as ondas espumavam revoltadas como se estivessem famintas de uma sede que as suas águas não saciam. Protegido pelos rochedos do lado norte do areal, um velho pescador contemplava serenamente o fio de nylon preso à cana, na esperança de que o momento o escolhesse para mais uma luta necessariamente desigual. Aproximei-me e espreitei para dentro do balde que estava vazio. "Hoje ele não quer e quando assim é nem vale a pena haver discussão", desabafou o velhote quando percebeu o meu ar de compaixão pela sua pouca sorte na pescaria. Sorri-lhe e confortei-o com um encorajante "a paciência é uma virtude". Desejei-lhe um bom dia e continuei a minha caminhada pela areia onde as ondas perdiam o fôlego e morriam para voltar a renascer. Depois da parede rochosa do lado sul percebia-se uma pequena baía que a baixa-mar denunciava. Sentei-me calmamente a passear os olhos pelo jornal do dia, mas sempre com atenção ao rugido feroz de cada onda. Não fossem elas fazer-me refém da baía, impedindo-me a passagem para terra firme. Não tinha relógio e também não dei pelo tempo passar. Mas achei que estava na hora de me ir dirgindo para um sítio mais seguro.
O velhinho continuava no mesmo sítio, só que agora algo mais atarefado numa luta desenfreada com o carreto que teimava em desenrolar. A presa parecia valer a pena, quanto mais não fosse pela resistência que estava a oferecer. Voltei a aproximar-me. No balde anteriormente vazio, cintilavam agora um sargo e duas safias. Enquanto não tirou o anzol da boca de mais uma safia ignorou completamente a minha presença. Decidi dar-lhe os parabéns pela paciência e preseverança. Afinal a pescaria até não estava a correr mal.
O velhinho de barbas brancas bem aparadas olhou para o jornal que eu trazia na mão e perguntou-me se havia alguma notícia interessante. Ofereci-lho de imediato, assegurando que já o tinha lido e que podia ficar com ele. Agradeceu, mas respondeu-me sem qualquer tipo de vergonha ou sentimento de humilhação que não sabia ler. Aquela sinceridade espontânea, despida de qualquer tipo de pudor impulsionou-me os dedos com os quais comecei a folhear o jornal para ler as actualidades ao velho senhor. Só me interrompia no final de cada artigo e poucas foram as notícias que comentou. À excepção de uma ou outra de foro político, em que fazia questão de demonstrar a sua indignação por um "país ingovernável". Numa das vezes que decidiu falar mais do que ouvir, contou-me alguns dos trilhos da sua vida.
O senhor Matias tinha 75 anos e vivia com a esposa num típico monte alentejano muito perto daquela praia. Toda a vida tinha vivido do mar, mas há muitos anos que a faina o abandonou. Dedicava-se agora à pesca apenas para subsistência da família. Quando o mar acordava generoso ia vendendo umas moreias, sargos ou safios para um ou outro restaurante, cujos donos considerava e tinha alguma amizade. O mar sempre fora o seu sustento, mas também se tinha feito pagar muito bem por este serviço. O senhor Matias tinha perdido a única filha numa tarde de Outubro, algures na década de 70, por obra daquele mar. O corpo nunca apareceu, tal a fúria e convicção com que o azul lhe preparou a partida. Não resisti a questioná-lo sobre a sua relação com aquelas águas. A ironia da fidelidade diária a um mar que lhe robou a sua maior obra era admirável. Respondeu-me, confortavelmente, que o rancor nunca lhe correu nas veias e que até os nossos carrascos merecem o respeito e o amor que não sabem dar. As palavras sinceras e altruístas do senhor Matias recordaram-me uma frase que alguém me disse um dia: "Ama-me quando menos mereço, pois é quando mais preciso". Este é o segredo da plenitude e da descoberta de todos os dias.
Mais dois dedos de conversa e perguntou-me se vivia ali perto. Contei-lhe que estava em viagem e que o acaso me tinha levado até àquele quadro. E mais uma vez a constatação que até o próprio acaso tem mesmo de acontecer.
O sol indicava o meio-dia e o senhor Matias preparava-se para mais um "até amanhã" àquele mar que tinha que amançar todos os dias. Fiquei petrificada quando me lançou o convite para almoçar em sua casa na sua companhia e da, dona Emília, sua esposa. Não podia aceitar, era muita generosidade da parte daquela alma para com alguém que, provavelmente, nunca mais veria na vida. Mas a expressão ofendida do senhor Matias prevendo a minha resposta não me deixou alternativa e aceitei o desafio da descoberta de mais um milagre.
O monte ficava a pouco mais de 2 quilómetros da praia. Durante a viagem dei comigo um pouco apreensiva, mas em nenhum momento senti que estivesse a por-me em risco. A calma e serenidade daquele velhinho que falava pouco contagiava-me e senti-me tão segura como se me dirigisse para a minha própria casa. A casa do senhor Matias e da menina "Milinha" (como a tratavam carinhosamente) apresentou-se-me com um monte de redes de pesca quase podres na entrada do portão. Há anos que não deviam ser mexidas, tal era o aspecto desprezado e bolorento com que me saudaram.
A dona Emília não se mostrou surpreendida com a minha chegada. Apenas lhe senti uma carinhosa aflição por não estar preparada para receber convidados para o almoço. "Nem tenho um docinho para sobremesa", lamentou-se envergonhada. Que coração grande o desta senhora. Aquele sorriso doce construído pela idade e o cheirinho afável a coentros da sua cozinha já me tinham sabido pela vida e alimentado a alma, mesmo sem almoçar.
Enquanto o senhor Matias preparava as brasas para assar as safias vomitadas pelo mar, ajudei a dona Emília a preparar o resto do almoço. Ao contrário do marido, falava muito mas fazia muito poucas perguntas. Era como se sentisse que não devia fazê-lo e aceitasse a minha presença sem questionar. "Cada cousa é o que é" e para a dona Emília não era difícil explicar a facilidade em aceitar a "espantosa realidade das cousas".
O almoço foi temperado pelos barrotes de madeira escura que enquadravam o perfeito naquele cantinho aconchegante e por algumas histórias que o senhor Matias partilhou com orgulho. A vida tinha sido madrasta, mas os dois eram o espelho de uma viagem feliz. Eram donos de uma simplicidade, ternura e amor que o olhar não escondia. Também para eles a vida era um milagre e isso bastava-lhes. "Basta exisitir para se ser completo".
Reparei que em cima do móvel da televisão estavam empilhadas algumas edições do Borda D'Água e perguntei à dona Emília se gostava de ler. Se o senhor Matias não lia, aquela leitura devia pertencer-lhe. Respondeu-me que sim, mas que lia apenas o Borda D'Água que um vizinho lhe trazia de quando em vez. Tentei responder à bondade do seu olhar. Olhei para dentro da minha mochila e a única coisa que podia deixar-lhe era um livro de poesia. Poemas, Sonetos e Baladas de Vinicius de Moraes. Abri o livro e li-lhe o primeiro texto que, curiosamente ou não, se chamava "Soneto de Fidelidade". Apresentei-lhe rapidamente o autor. E a ironia de ter sido escrito em Portugal em 1939, precisamente no ano de nascimento da dona Emília despertou nos seus lábios uma tremenda gargalhada de quem rejuvenesceu para sempre. Não sei se a D. Emília vai entender o velho Vinicius, mas eu jamais esquecerei o perfume dos coentros, a doçura da sobremesa que não teve tempo de preparar e a intensidade com que o senhor Matias se entregou ao momento inesperado do presente.
Se a menina 'Milinha' e o senhor Matias soubessem o que fizeram por mim naquela manhã, viveriam o tempo que lhes resta com a certeza inquestionável de um lugarzinho no céu.

AP


"A espantosa realidade das cousas,
é a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
e é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra
e o quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo"

Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos

1 comentário:

Anónimo disse...

Consigo ver o teu sorriso de gratidão em cada segundo deste tempo.

És mesmo uma menina muito especial.:)

Pedro