terça-feira, 23 de junho de 2009

A sós com a noite

Há quem o chame louco, excêntrico. Ou até velho estouvado que só sabe dizer adeus. Muitos sabem quem é, mas poucos conhecem a verdade do senhor João. O homem que lê Agatha Christie para espantar os medos. O homem que percorre as noites da Av. Fontes Pereira de Melo a cumprimentar graciosamente quem passa. Para este homem, o simples gesto de dizer adeus dá sentido à sua vida. Considera-se criador de um milagre. Neste mundo de estranhos e de gentes fechadas, este é o seu milagre e também a sua cura. Quem passa pelo Saldanha, quando a lua visita a cidade, não fica indiferente à figura do "senhor que diz adeus".
João Serra tem a bonita idade de 76 anos e é dono de uma alma que faz inveja a muitos jovens. Transforma-se rapidamente num avô contador de histórias, quando o abordam. É um conversador de coração cheio. As vestes clássicas e a ondulação da cabeleira branca conferem-lhe um ar aristocrático. O senhor João tem em si a inocência de uma criança, o espírito de um jovem, mas o olhar nostálgico de um ancião que sente ter aprendido a viver tarde demais. Sempre quis ser actor, mas nunca o deixaram. Ou talvez não tenha tentado.
Nasceu no seio de uma família abastada que vivia num palacete da rua Tomás Ribeiro. Em adolescente, consumada a separação dos pais, foi viver para o Restelo, onde voltou a residir desde a morte de sua mãe. É lá que ainda vive e foi por lá que o reencontrei.
O senhor João sempre viveu para os outros e em função dos outros. Por vontade do pai inscreveu-se em Direito, mas rapidamente percebeu que era chato e aborrecido, abandonando o curso. De seguida, integrou História e Filosofia que também se revelou de curta passagem. Sem saber o que havia de lhe fazer, o pai mandou-o para Londres com o irmão. Viveu 3 anos em Inglaterra. Tempos que recorda com saudade pelas viagens que conseguiu fazer. Voltou a Portugal com saudades da família. " Nunca consegui ficar muito tempo longe dos que amo", confessou-me. E ficou calado, de olhar perdido numa dor só sua.
Admite que possa parecer estranho o que faz. Será sempre mais fácil julgá-lo como um louco. Mas é a forma mais bonita que conhece de disfarçar a solidão que o consome e o faz olhar para o passado com arrependimento, porque não ousou viver a própria vida em vez da dos outros. Jazem num velho baú os sonhos que não realizou. O curso que não fez, os filhos que nunca teve e o grande amor que não viveu. Ainda assim, esta é certeza inquestionável para o senhor João. "Mesmo com a vida a fugir, sou crente no amor. Sinto-me só e incompleto. Alguma coisa falhou". Nos olhos cinzentos, por trás dos óculos de massa negra, sinto-lhe o conter de duas lágrimas. Explica-me que anseia pelo passado, pelo presente e pelo futuro que não chega. A inquietação da juventude acompanha-o até hoje. A retribuição de um beijo, de um sorriso, ou de dois dedos de conversa é o suficiente para trazer de volta o brilho aos olhos do geronte.
Quando me despedi dele, agradeci a partilha de emoções. Ele tirou os olhos da dor, deu-me o seu melhor sorriso e falou-me com o coração: "Sê feliz, minha menina. Se não nos virmos mais, encontramo-nos no céu".
Tenho fé, senhor João, tenho muita fé.

Para si, senhor João.
Com admiração e carinho.

AP

4 comentários:

Marta disse...

Os milagres acontecem a quem acredita neles. Consigo sentir as palavras do senhor João e a emoção com que as ouviste. É bom saber que ele ainda lá está!
Há dias, deu entrada no bloco um velhote mexicano que, pela doçura do olhar e a gana de viver, me fez lembrar o senhor João. Veio para Madrid com 21 anos atrás de uma jovem bailarina, que nunca conseguiu reencontrar. E por cá ficou. Ias adorar conhecê-lo.

Beijoca.

Marta.

Carlos disse...

muito bem, um grande bem-haja ao sr. Joao que quase pos a Ana Lucia em lagrimas!!! fantastico... agora AL, teras de escrever novamente sobre o sr. Joao na altura do Natal,estou a acreditar em ti...

e essa conversa natalicia tera de ser ainda ca em baixo em terra!!!

Marta... conta lá essa historia do mexicano... parece-me interessante!!! :)

Magia...sim, ha momentos magicos!!!

Isabel disse...

Quando somos veículos de corações grandes, a ansiedade e a inquietação acompanham-nos para além do tempo. Se hibernarmos com a idade e deixarmos de sonhar, estamos a recusar VIVER. E o coração pára.

Isa

Li disse...

"Que estranha forma de vida...
...Vive de vida perdida,
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida..."

Li